Publicado em: 17/12/2020 16:07:30
Afinal, bibliotecários gostam ou não de receber doações em suas bibliotecas?
Um conhecido intelectual brasileiro queixava-se, em sua página numa rede social, das dificuldades encontradas para doar sua biblioteca pessoal a uma instituição. Uma amiga bem intencionada marcou meu nome na publicação do professor, pensando que talvez a USP pudesse se interessar.
E lá fui eu esclarecer alguns pontos, por exemplo, que estamos numa pandemia e a maioria das bibliotecas, se não está completamente fechada, suspendeu o recebimento de doações. Achei desnecessário lembrar que as doações não se teletransportam automaticamente da casa do doador até as estantes das bibliotecas. E que os seres humanos que precisam receber e, eventualmente, até ir buscar os livrinhos também estão sujeitos a contágio. Postei link para um texto no qual explico como é o processo de receber e selecionar doações. O professor, coitado, até mudou o texto de seu post, observando que estava entendendo melhor as dificuldades da coisa toda.
Dei uma espiada nos comentários da postagem e percebi que muita gente está com o mesmo problema: não consegue doar seus livros. E tive que responder, tentando ser delicada, a pelo menos dois comentários: o arrogante que concluiu que bibliotecários não gostam de receber doações porque “dá trabalho” e preferem “comprar um livro por semana” e a inocente que adoraria ter o “trabalho” (assim mesmo, entre aspas) de catalogar livros. Sim, muita gente confunde critérios de seleção e falta de estrutura das bibliotecas com preguiça dos bibliotecários, esses eternos culpados de tudo. E também há os que não têm a mínima ideia do que é, de fato, o trabalho numa biblioteca e de como pode ser árduo – apesar de interessante.
Muitos pesquisadores e professores passam a vida comprando livros, mas nem sempre cuidam bem deles. E como têm recursos para comprar todos os livros que desejam, não costumam frequentar bibliotecas. Mas, em algum momento, percebem que não têm mais espaço em casa, não estão mais usando 95% daqueles livros e não têm para quem deixar seu acervo quando morrerem. Então, sentindo-se generosos, decidem doar tudo a uma biblioteca, e descobrem que a maioria das bibliotecas não precisa, não quer ou não têm condições de receber 1.000 ou 2.000 livros de várias áreas, às vezes empoeirados, fungados, deteriorados e desatualizados, muito menos de ir buscar esses livros na casa do doador. A decepção costuma ser grande.
Por que tantos intelectuais acumulam desnecessariamente centenas de volumes em suas casas, em vez de ir doando às bibliotecas, aos poucos, seus livros ainda novos e atuais, para que possam ser aproveitados por pessoas menos privilegiadas? Apego, claro, gente que gosta de ler costuma gostar de ter livros ao seu redor. Mas também pode ser uma questão de poder. Ter muitos livros, emprestar somente a alguns leitores selecionados aquele livro que ninguém mais tem não deixa de ser uma forma de poder. E doar uma enorme biblioteca quando não precisa mais dela é uma forma de atribuir a sua existência um valor adicional. Ou não?
Bem, mas algumas doações são ótimas, e compensam até eventuais despesas com higienização e encadernação. Então, por que é tão difícil encontrar abrigo para bibliotecas pessoais? Creio que a maioria dos bibliotecários sabe a resposta: porque não damos valor a bibliotecas e instituições culturais em geral neste país, não cuidamos delas, não investimos recursos nelas, e até elegemos autoridades que desprezam a cultura, e ignoram a ciência e destroem a educação. Se não fosse assim, o Museu Nacional não teria pegado fogo e a Cinemateca Brasileira não estaria fechada.
Não adianta aliviar a consciência atribuindo a culpa à “preguiça” dos bibliotecários. O problema é bem mais profundo.
Mas temos culpa, me parece, quando não conseguimos lidar de forma amigável com as ofertas que precisamos recusar. É preciso sensibilidade para entender que a quebra das expectativas dos candidatos a doadores tende a ser dolorosa, e que uma recusa pouco diplomática pode ter consequências ruins para nossa imagem profissional.
Fonte: Bibliotecários Sem Fronteiras